quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

40 anos da morte de Pixinguinha. O choro "Um a Zero" e o Campeonato Sul Americano de 1919.

Como bem sabemos, o futebol e a música já produziram belas tabelinhas nos mais diversos "campos" do Brasil e do Mundo. A relação entre essas manifestações culturais aparece de maneira explicita não apenas no canto e batuque das torcidas, mas também nas letras de várias músicas que foram gravadas e viraram sucesso nas melodias e na voz de grandes artistas. Para os amantes dessas formas de expressão cultural esse mês de fevereiro foi especial, pois o último dia 17 marcou os 40 anos da morte de Pixinguinha, um dos maiores músicos da história do nosso país. Todos aqueles que nunca ouviram falar desse grande artista, nem tampouco conhecem o "chorinho", gênero musical genuinamente brasileiro, devem está se perguntando qual a relação que o autor e a sua obra tem com o futebol. Os apreciadores do "choro", no entanto, logo lembrarão da música "Um  Zero", composta por Pixinguinha e Benedito Lacerda no ano de 1919.
Nessa época, o Brasil sediou pela primeira vez uma competição internacional: o III Campeonato Sul Americano de Futebol, realizado na cidade do Rio de Janeiro, capital do país naquele momento. O torneio foi disputado pelas seleções do Brasil (dona da casa), ArgentinaUruguai e Chile, que também haviam participado das duas primeiras edições realizadas, respectivamente, na Argentina (1916) e no Uruguai (1917). A seleção uruguaia, que na década de 1920 ganharia a insígnia de Celeste Olímpica, por contas das conquistas nas Olimpíadas de Paris (1924) e Amsterdã (1928), chegou como bicampeã sul-americana, pois, nas edições anteriores, bateu duas vezes a Argentina. Até então, a seleção brasileira  nunca havia vencido uma competição internacional, e seu melhor resultado havia sido os dois terceiros lugares obtidos nos sul-americanos anteriores. Apesar do futebol ainda ser muito restrito às classes dominantes, toda população do Rio de Janeiro mostrou grande interesse pela competição, que foi disputada no recém fundado estádio das Laranjeiras (antigo campo da Rua Guanabara), maior praça de futebol da América Latina na época.

Visão geral das Laranjeiras, estádio do Fluminense, durante o jogo
 Brasil e Uruguai pelo Campeonato Sul Americano de 1919.

A princípio, o campeonato deveria ter sido realizado em 1918, mas uma grave epidemia de gripe espanhola acabou adiando o evento para o ano seguinte. A competição foi disputada em turno único e todas as seleções jogaram entre si. Em 3 jogos, a seleção brasileira venceu duas partidas e empatou uma: estreou goleando o Chile (6 x 0), depois derrotou a Argentina (3 x 1) e empatou com o Uruguai (2 x 2). No final do turno, as seleções brasileira e uruguaia terminaram empatas com 7 pontos, por isso foi preciso realizar um jogo de desempate entre as duas equipes para decidir quem seria o campeão. O governo decretou ponto facultativo, o que fez com que bancos e casas de comércio não abrissem as portas. A partida de desempate estava marcada para a tarde, mas milhares de torcedores começaram a se aglomerar nos arredores do estádio desde as 11 horas da manhã. Na época, as Laranjeiras tinha capacidade para 20 mil lugares, mas estima-se que havia pelo menos 28 mil pessoas nas arquibancadas para assistir a grande final. Além disso, do lado de fora do campo, milhares de pessoas que não conseguiram comprar ingresso subiram nas árvores e nos morros vizinhos para acompanhar a peleja.

Nessa imagem é possível observar os morros
 e árvores ao redor do campo lotado.

O jogo foi simplesmente emocionante. Nos 90 minutos regulamentares, nenhuma das duas equipes conseguiu mexer no placar. Veio então a prorrogação, mas nos 30 minutos de tempo extra persistiu o placar de 0 x 0. Como não havia disputas de pênaltis na época houve uma segunda prorrogação de mais 30 minutos, mesmo com os times extenuados em campo. Logo no terceiro minuto o Brasil chegou as redes com Friedenreich (apelidado de "El Tigre" pelos uruguaios), primeiro grande craque brasileiro, que aproveitou o rebote oferecido pelo goleiro adversário. O jogo terminou 1 x 0, resultado que garantiu o primeiro Campeonato Sul-Americano ao Brasil, que ganhou um inédito título internacional, até então nunca antes conquistado. A realização da competição e a conquista brasileira causaram um impacto tão forte na população do Rio de Janeiro que o jornal A Rua publicou: "antes do campeonato, o football aqui já era uma doença: agora é uma grande epidemia, a coqueluche da cidade, de que ninguém escapa".

Brasil campeão do sul americano de 1919: Píndaro, Pereira, Fortes, Amílcar, 
Bianco, Marcos, Milton, Heitor, Arthur Friedenreich, Neco e Arnaldo.

Como habitantes da capital federal, Pixinguinha e Benedito Lacerda não escaparam dessa epidemia, da verdadeira coqueluche em que o futebol se transformava na cidade. Inspirados pelo 1 x 0 contra os uruguaios, os músicos compuseram o famoso choro "Um a Zero", que insere-se nesse vibrante ambiente da conquista brasileira. Na versão original não havia letra na música, que sofreu essa alteração somente muito tempo depois graças a criatividade do compositor mineiro Nelson Ângelo, integrante do Clube da Esquina. Muitos estudiosos afirmam que o choro "Um a Zero" trata-se da primeira composição dedicada ao futebol no Brasil. Especialistas e pesquisadores destacam ainda que o ritmo da música, marcado pela aceleração e cadência rítmica, guarda relação intrínseca com a correria e a intensa disputa da partida final contra a seleção do Uruguai. Diante disso, nota-se o quanto essa partida marcou esses mestres do "choro" e da música popular brasileira.

Em uma gravação dos anos 1950, Pixinguinha toca 
"Um a Zero" com o seu conjunto.

Essa magnífica composição de Pixinguinha e Benedito Lacerda representa mais uma amostra do quanto essa competição internacional impactou a população da capital federal. O futebol, que até então estava restrito as elites, tem o seu primeiro impulso de massificação e popularização com essa conquista brasileira. Friedenreich, um legítimo mestiço, filho de um comerciante alemão com uma lavadeira negra brasileira, foi alçado a categoria de herói nacional. Nesse contexto, a vitória da seleção brasileira teve uma importância que ultrapassou os limites das quatros linhas do campo. Em um momento raro até então na história do nosso país, ricos e pobres se misturaram e compartilharam algo, que pode ter sido apenas o sentimento de se emocionar ou de vibrar juntos, mas que não deixou de ajudar a quebrar alguns velhos preconceitos, visto que pelo menos o direito de se divertir com o jogo estava sendo democratizado. Ironicamente, o futebol, que inicialmente era praticado apenas por uma minoria de poderosos, ofereceu, como bem lembrou o jornalista Roberto Sander em seu livro sobre o Sul Americano de 1919, a "tão almejada igualdade que a decadente República Velha, intransigente, se recusava a proporcionar". Talvez tenha sido essa peculiaridade que estimulou Pixinguinha, que não jogava futebol, nem tampouco parecia apaixonado por nenhum clube, a compor o chorinho 'Um a Zero", que certamente representa muito mais do que apenas uma música destituída de história.

Áudio da música "Um a Zero", versão com letra
 do compositor mineiro Nelson Ângelo.

Um comentário:

  1. Olá.

    Sou pesquisador acerca do tema "FLAMENGO e MÚSICA", com canções que citem ou homenageiem o clube. Apesar do post ter sido feito em 2013, cabe aqui a informação: 1 x 0 NÃO FOI a primeira música feita para o futebol. Há três músicas em homenagem ao Flamengo anteriores à ela. Estou escrevendo um livro sobre esse trabalho e um site também.

    FlaMúsica - O Site da Memória Musical Rubro-Negra!

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